Número total de visualizações de páginas

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Inédito [6ª parte]

A noite corria silenciosa no seu reino tranquilo, indiferente às almas humanas que vagueavam cobertas pelo seu manto escuro. A rua dormia imperturbável, três candeeiros irradiavam uma luz amarela que iluminava pedras da calçada e raros passos humanos. Um carro surgiu acompanhado pela forte luz branca dos seus faróis e as rodas assinalaram um piso de gravilha. Os travões chiaram levemente, o carro parou o seu movimento e o ruído proveniente das rodas na gravilha cessou. O motor permaneceu mais alguns segundos a roncar até ser desligado pela vontade humana. Nesse mesmo instante os faróis apagaram-se.
Ao fundo, no início da rua, passos sonoros abriam o seu caminho. Saltos altos anunciavam um andar feminino, calmo e decidido apesar das irregularidades da calçada. Ao primeiro candeeiro um cabelo longo, castanho e solto, revelou-se por instantes até ser escondido novamente pelo manto da noite. O passo feminino aumentava progressivamente o seu volume à medida que subia a rua, ao segundo candeeiro um nariz pequeno, olhos castanhos de tonalidade clara e uma face simples branca a cair para o moreno mostrou-se ao munto pequeno daquela rua. O passo continuava o seu caminho imperturbável e imune ao único transeunte que desafiou partilhar o mesmo passeio em contra-mão, e ao carro que permanecia incógnito no seu canto. Ao terceiro candeeiro, o que lançava uma luz mais forte e espaçosa, apareceu um vestido preto liso tapando até ao início do joelho e um decote aberto deixando à vontade aquilo que escondia. O passo feminino entrou novamente no escuro e o som que os saltos altos produziam na calçada eram ritmicos e o som mais nítido do que nunca. De repente o passo parou, uma mala desceu silenciosamente pelo braço nu e uma mão remexeu no seu interior. Passados alguns segundos um pequeno e insignificante molhe de chaves surgiu por detrás do manto da noite e tilintando acompanhando o movimento da mão e da mala a subir de novo o braço. A figura feminina do vestido debruçou-se e o molhe de chaves voltou a tilintar ao som da abertura da porta. Ela abriu-se e os passos femininos entraram no seu prédio.
As chaves roçaram na parede rude interior enquanto a mão procurava o interruptor da luz interna, que foi aberta assim que o botão foi encontrado. Os saltos altos voltaram a ecoar assim que as duas pernas simples e discretas subiram dois degraus e caminharam na direcção do elevador. As chaves voltaram a tilintar quando o dedo onde estavam anichadas subiu pelo ar e carregou no botão, chamando pelo elevador. O ascensor estava no último andar, curiosamente o seu, o que lhe dava largas dezenas de segundos à espera. Passou a mão direita pelo cabelo espalhando-o e levou os dedos à boca, mordendo a pele no canto das unhas num tique imparável. Com um pequeno som o elevador anunciou ter chegado ao rés-do-chão e a figura feminina abriu a porta e entrou. Desta vez as chaves não tilintaram , foi a mão direita que subiu até ao botão do seu andar. O ascensor começou o seu movimento ascendente, a mão esquerda divertia-se a remexer nas chaves enquanto o elevador não chegava ao seu destino final. Mais um pequeno sinal sonoro e a figura feminina voltava a abrir a porta do elevador. Os seus passos ecoaram no corredor branco e caminhou para a sua direita, na direcção da rua. A porta do seu apartamento foi aberta com um novo tilintar das chaves e a figura feminina fechou a porta calmamente atrás de si.
Dentro do seu apartamento estava escuro, apenas a luz dos candeeiros iluminava parcamente o seu interior. Deixou as chaves caírem dentro de um prato de vidro em cima de uma pequena mesa de madeira e pousou a pequena mala preta ao lado. Debruçou-se e com uma das mãos retirou um dos sapatos que deixou cair no chão. Tirou outro e também deixou-o cair. Pousou os dois pés finalmente livres no chão frio e soltou um longo suspiro de alívio. Caminhou pelo corredor de entrada e virou à sua esquerda, entrando dentro do seu quarto. A janela estava fechada mas os estores abertos deixavam que a luz artificial nocturna entrasse e iluminasse parte do seu quarto. Sentou-se à beira da cama vazia e solitária e massajou os seus pés doridos. Levantou-se e dirigiu-se para uma porta que estava à sua frente, abriu-a e os seus pés pisaram azulejos frios que lhe causaram arrepios momentâneos. Inclinou-se sobre a banheira e abriu a torneira de água quente enquanto se preocupava com que ela não escapasse. Saíu da casa de banho, deixando a porta aberta com o som da água ao fundo e caminhou pelo quarto. À sua frente estava uma aparelhagem, abriu a caixa de entrada dos cd's e colocou um, deixando-o como música ambiente. Despiu o vestido, deixando-o escorregar até ao chão. À luz dos candeeiros um soutien caiu no chão seguido por um fino fio dental. A figura feminina fechou os olhos e enrolou os dedos à volta do cabelo, apreciando o cd da Ministry of Sound. A luz artificial criada pelo homem deitava uma parca e fina luminosidade sobre uma figura feminina nua que caminhou pelo quarto até à casa de banho, fechando a porta atrás de si antes de abrir a luz.
Dentro do carro, depois do motor ter sido silenciado pela vontade humana, uma respiração calma e uns olhos negros fitavam a rua à sua frente. Os dedos da mão direita lançaram-se a um bolso interior e retiraram uma caixa de charutos. Deixou escorregar o charuto para fora do seu abrigo e levou-o à boca prendendo-o entre os lábios. Ao fundo um vulto feminino com um vestido preto liso subia a rua num passo cada vez mais audível. Pegou num isqueiro e lançou-se à tarefa de acender o charuto até o ter da maneira como gostava. Enquanto o fazia os seus olhos não largavam a figura feminina que subia a rua, parava, abria a porta e que entrava no seu prédio. O vulto dentro do carro deliciou-se com os primeiros bafos no seu charuto irrepreensivelmente aberto enquanto a figura feminina abria a luz do prédio e entrava no elevador. As dezenas de segundos passavam, o charuto era fumado lenta e deliciosamente e no alto do seu andar, a figura feminina despia-se e preparava-se para o seu banho. O vulto dentro do carro não conseguia ver mas sabia precisa e detalhadamente o que se passava por detrás daquela janela. Mais um minuto e uma luz acendeu-se na pequena janela da casa de banho. O vulto masculino encostou-se ao seu assento e permaneceu a fumar lentamente o seu charuto, enquanto olhava para a janela. Por entre os dedos da mão direita, escondida na plena escuridão, uma caneta desfilava e rodava no vôo silencioso.

2009-02-11
01h48