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segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Um livro inacabado... [pág.324]

Eleth permaneceu imóvel junto da sua cama e perto da mesa devastada pela fúria de Peroth. O seu olhar ficou fixo na porta recém fechada praticamente desaparecida por detrás da luminosidade quase inexistente, a noite estava a um passo de ter o reino absoluto. A sua respiração era lenta e pausada, a sua mente parecia parada sem capacidade de reacção e a sua boca estava ligeiramente aberta, de espanto. Eleth engoliu em seco e o seu olhar começou a movimentar-se pelo quarto. À sua frente estavam os destroços do último assomo de raiva do seu filho, uma mesa devastada, papéis atrás de papéis espalhados pelo chão, um espelho partido contra a sua cama, brincos e pulseiras feitas pela sua mãe durante a infância e que conservava com carinho também estava pelo chão, a caixa que as albergava estava aberta, violada por uma fúria incontrolável.
A sua mente recomeçou a trabalhar, a sua respiração começou a descontrolar-se e o seu espíriro iniciava o processo de assimilamento, de reacção perante a fuga inesperada. Um mau estar interior aumentava de intensidade, o coração abria mil feridas saradas por instantes à espera do golpe final, um despedaçar contínuo em bocados infinitos, um edifício inteiro que se desmoronava num simples pó que alastrava pelas suas veias, contaminando os seus músculos e chegando até à orla dos seus olhos. As pernas começaram a fraquejar, o seu olhar revia e revia a destruição à sua frente e Eleth deixou-se cair sobre os seus joelhos. A barragem de água acumulava-se mais e mais na fronteira dos seus olhos com a pele, a respiração tornava-se num soluçar e de repente as lágrimas começaram a jorrar. Eleth expressava finalmente, tranquilamente e isolada, o seu sofrimento interior, o resultado da tortura da pessoa que mais amava em toda a sua vida, um choro inevitável fruto do segredo que trazia desde o momento em que Peroth tinha nascido e que Sôphôz lhe tinha contado, com a mãe ao lado.
O seu choro era silencioso e calmo, o seu olhar estava embargada e fixo no mesmo sítio, no mesmo local do chão do quarto, a mesma peça de madeira escura onde estava um simples desenho, numa pequeníssima folha de papel, que Peroth lhe tinha feito no sexto aniversário e que a sua fúria lhe tinha revelado. Um desenho onde eles os dois apareciam, em simples linhas toscas de criança, com as mãos agarradas, as duas faces com um enorme sorriso e um "amo-te mãe" escrito por debaixo das duas figuras. Eleth nao aguentou mais e deixou-se arrastar até ficar deitada no chão, o choro era incontrolável, as feridas sangravam mais do que nunca. Sabia que era um sofrimento que tinha obrigatoriamente de passar, sabia que Peroth nunca iria compreender o porquê de ela lhe mentir, mas era uma via sacra da qual não podia fugir, era o seu destino e não o podia alterar. E então a sua mente lembrou-se do significado das últimas palavras do seu velho tutor.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Informação

Devido a um problema técnico foi impossível continuar no endereço antigo. Como tal foi criado um novo, mesmo nome, para manter o mesmo espírito ... Procedi, nos textos anteriores à republicação dos mesmos, e assim continuar no mesmo fio condutor...

Os comentários já produzidos, infelizmente, não constam.
As minhas desculpas por tal

Inédito [5ª parte]

O carro parou no sítio mais negro que se podia encontrar na rua. O candeeiro mais próximo distava a cinquenta passos e soluçava por ter um lampejo de luz por cinco segundos. Uma mão invisível, escondida pelo breu da noite rodou a chave da ignição e o motor adormeceu numa hibernação temporária. As ruas estavam desertas de vida, de luz, de sons, um buraco negro citadino fazia-se sentir naquele pequeno espaço onde um condutor enigmático estacionou um carro misterioso. Finalmente o candeeiro teve os cinco segundos de luz contínua que tanto ansiava, o suficiente para descobrir um carro cinzento e pedaços de dedos que voavam no espaço interior do automóvel.
A sua respiração era suave e silenciosa fruto de uma paz interior que gostava de prolongar. Naqueles cinco segundos ténues, os dedos da sua mão direita foram revelados a dirigirem-se para o cimo do volante. Os seus ouvidos captaram o tamborilar vigoroso e paciente dos dedos no volante, os seus olhos permaneciam escondidos por detrás de um pedaço de pele. A sua mão esquerda remexeu num dos bolsos das calças à procura de algo. Os seus olhos abriram-se imperceptíveis por detrás do cobertor nocturno estimulados por algo dentro do bolso. Algo foi retirado, os dedos da mão esquerda trabalhavam mudos rodando o início de algo. A certa altura os dedos pararam de desenroscar e pousaram algo no colo masculino, algo saiu de dentro de algo com um som milimétrico. Novamente o candeeiro voltou a ter cinco segundos de luz e um tubo branco "Gran Corona" revelou-se. A luminosidade desapareceu e com ela a possibilidade de ser descoberto. Os dedos da mão esquerda pegaram em algo e colocou-o por entre os lábios, os dedos da mão direita pararam de tamborilar e esticaram-se para apanhar algo perto do volante. O barulho de uma pedra de isqueiro fez-se ouvir e com ele surgiu uma chama a bailar. Colocou-a na ponta do charuto e imediatamente inúmeros pontos laranja pontilharam a ponta do produto cubano. A chama era ténue e não conseguiu revelar mais do que dois olhos castanhos, a ponta de um nariz, dedos curvilíneos a rodar o charuto e o próprio a ser queimado.
A rua continuava literalmente morta, o buraco negro continuava a sugar todo o tipo de vida e de luz que o candeeiro se engasgava por obter. A única excepção era um pequeno ponto laranja perdido no meio da escuridão e sem conseguir iluminar algo. O ponto laranja movimentou-se dentro do carro e por segundos ficou mais brilhante queimando folhas de "El Comandante". Assim que sentiu o bafo do charuto fechou os olhos e deixou-se contaminar por aquela névoa que o matava à medida que o relaxava. Uma noite atípica de trabalho iria começar e era daqueles dias nocturnos que não lhe apetecia mesmo nada ter. Já tinha observado bastante, reunido todos os pormenores, todos os vícios, todas as imperfeições possíveis e imagináveis que pudessem deitar tudo a perder. O charuto acalmava-o mas não se comparava a outra coisa, algo que ele necessitava urgentemente como uma droga viciante para o acompanhar pelos dedos enquanto pensava. E nesse preciso momento ele pensava enquanto o seu olhar cravava-se em algo perdido no horizonte mas que ele sabia perfeitamente que estava lá. No fundo o espesso manto nocturno era a sua cobertura ideal e o disfarce preferido, sem a sua ajuda nem sequer se tinha dado ao trabalho de sair de casa.
Mais uma vez a ponta laranja do charuto acendeu-se queimando ainda mais folhas de Havana. No mesmo momento, inesperadamente, o candeeiro conseguiu atingir dez segundos de luz pública forte. Nesse raro espaço de tempo o carro cinzento misterioso tornou-se num banal Peugeot 206 e o condutor incógnito, permaneceu incógnito. À medida que puxava pelo charuto fez com que o banco descaísse totalmente salvando-o da luz. Afinal, tanto tempo de observação tinha-lhe dado o conhecimento exacto do estado de coma do candeeiro e as raras vezes em que ele recuperava a consciência. Assim que o candeeiro apagou-se voltou a subir o banco, a tamborilar os dedos da mão direita no volante e a colocar o charuto entre os lábios reavivando ainda com mais força a pequena ponta laranja. Nesse instante os olhos castanhos foram iluminados, a olhar para um exterior negro e vago e assim que a chama laranja atingiu o olhar, este transformou-se e uma névoa vermelha passou pelos olhos, uma nuvem vermelha sangrenta.

2008-11-02
03h52

Doc. 1

"Uma árvore lança a sua sombra perante uma relva suave e verdejante. Ele senta-se debaixo da sombra, um fresco imediato invade a sua alma acalmando-o. À medida que o tempo passava sentia-se cada vez mais envolvido num abraço calorento, entre dois braços de algo que o anichavam numa segurança que o tranquilizava. O tempo desenrolava-se e ele sentia-se cada vez melhor, uma névoa penetrava nos seus músculos entorpecendo-os, um veneno percorria as suas veias contaminando-o de algo que lhe provocava um sorriso infinito perdido no tempo e na memória que o criou, uma tortura que subia até ao cérebro tapando-lhe os olhos do que o rodeava e da falsidade da sombra que estava a dar-lhe guarida. Num dia a fachada caiu e a sombra revelou a sua verdadeira face, indigna do seu contemplar, da sua inspiração, incompreensivelmente distante e sem compreender o porquê de se ter abrigado nela. A culpa era dela, foi sempre dela por ter mostrado um lado que na verdade não era o seu verdadeiro, era algo mantido artificialmente. Ele saiu debaixo da sombra e voltou para o sol árido e mortífero que mata reminiscências que podem ficar adormecidas, um teste à resistência pessoal. E aí descobriu que a culpa não era só da sombra, era também dele.
Longos tempos ele sobreviveu debaixo do sol aterrador que tudo engole, que tudo derrete, que tudo apaga da memória mais duradoura. Algumas pequenas palmeiras ele encontrou pelo caminho, memórias fugazes que passaram tão rapidamente como aquela brisa que afaga os rostos na praia uma vez na vida. Aí ele permaneceu tempos breves tentando alimentar algo que não tinha meios para ser alimentado e se tinha, tudo se desvaneceu da mesma maneira leve como apareceu. Até que um dia reencontrou a primeira árvore e a primeira sombra.
Passado tanto tempo a árvore e a sombra pareciam-lhe diferentes à primeira vista. Estava mais alta, mais adulta com as suas folhas mais desenvolvidas e a sombra estava mais comprida, mais apelativa. Aproximou-se com cuidado para ver com mais atenção se os seus olhos não estavam mais uma vez a ser enganados. Observou com muita atenção, reparou em todos os poucos pormenores que podia reparar e na verdade espantou-se, estava mesmo mudada. A antiga árvore e a sua sombra tinham-se transformado de uma maneira que nunca tinha previsto. Sentou-se dentro da sombra desconfiado, sem dar parte de fraco à sombra. Mas à medida que o tempo passava algo o encantava mais do que da primeira vez, aquela mudança confundia-lhe a mente. E então sentiu que afinal não tinha perdido o encanto por aquela árvore e aquela sombra, ela estava adormecida dentro da sua memória à espera daquela mudança para que se reavivasse de novo. O tempo desenrolava-se debaixo daquela sombra e ele voltava a sentir uma espécie de névoa nos músculos, de veneno nas veias, de uma tortura cerebral. E quanto mais tempo decorria debaixo daquela sobmra mais necessitava dela, mais queria estar ali, mais desejava que o tempo parasse naquele momento e o congelasse.
Ao fundo, no horizonte, uma palmeira solitária, a palmeira que nunca devia ter sido descoberta, a sombra que nunca deveria ter sido experimentada, a excepção à regra de ouro que nunca deveria ter sido aberta, a palmeira solitária reaparecia teimosamente, a caixa de pandora adormecida reaberta, a tentação proibida que não podia correr o risco de cair, pertubando-o constantemente."

2008-10-29
02h02

Inédito [4ª parte]

Permaneceu mais instantes a observar a esquina por onde tinha visto a mulher a desaparecer. Por detrás daquela curva escondia-se, num mistério incógnito, uma visão que o tinha deixado curioso, uma possível descoberta continuada e paciente. O seu pé direito tinha parado de rodar sobre o cigarro morto e sentia dentro de si aquela névoa cinzenta a cavar uma sepultura lenta e inevitável. Voltou-se de costas para a esquina apagando para sempre a hipótese de uma continuação e voltou a dirigir-se para a porta do prédio. Parou na sua entrada e fitava pela segunda vez o lanço íngreme de escadas bafientas que subia para o andar pretendido. Nas suas costas o polícia cofiava o seu bigode enquanto compunha com afinco o seu chapéu, ao fundo um par de adolescentes roubava uma idosa.
Avançou dois passos e entrou na soleira da porta. Colocou o pé direito no primeiro degrau e pressionou-o, sentindo a madeira outra vez a estilhaçar-se debaixo da sua sola. Os seus olhos castanhos tentaram vasculhar o negro que cobria o espaço mas foi incapaz de reparar em algo, algo que esperava encontrar. Baixou o olhar na direcção das escadas que conseguia ver e viu as mesmas escadas íngremes que teve de percorrer ao longo dos últimos dois anos, sem ver o fim à vista. Soltou um suspiro resignado e começou a subir os degraus.
À medida que subia o lanço sentia com mais nitidez a madeira a desfazer-se mas milagrosamente chegou incólume à porta entreaberta do andar. À sua esquerda um vazio negro estendia-se até um abismo escondido e invisível, uma visão que bem conhecia. Cravou o seu olhar na porta à procura de pormenores. Estava entreaberta e a corrente de ar preocupava-se em batê-la no trinco, tinha um ar frágil de cor castanho-escuro. Aproximou o seu olhar e fitou com atenção a fechadura. Parcos riscos leves notavam-se à volta dela, na madeira junto ao trinco os seus dedos sentiram finas falhas provocadas por um objecto afiado. Encostou o dedo à madeira e empurrou a porta que se abriu lentamente. À sua frente estendia-se um corredor largo coberto por paredes beje pontilhadas por vários quadros, um navio atracado num porto medieval de uma cidade industrializada, uma paisagem naturalmente verdejante com parcas árvores e cores a mais. Os seus olhos captaram um ou outro jarro branco com iluestrações azuis anichados em pequenas mesitas vergonhosas da sua altura desmesurada. O corredor prosseguia até atingir uma parede que seguia para a direita iniciando outro caminho. Pensou para si próprio que prestaria mais atençao aquela parte da casa talvez noutro dia.
O seu olhar e sobretudo a sua atenção foram captados pela primeira porta que encontrou à sua esquerda. Era uma porta de vidro, naquele momento totalmente escancarada, estilhaçada num padrão irregular. Raspou os dedos pelas falhas tentando descobrir como poderiam ter sido feitas mas necessitava de mais tempo e mais observações. Junto da porta vários pedaços de vidro estavam anarquicamente espalhados pelo chão da sala. Pela sua disposição pareciam-lhe despojos de uma luta corpo a corpo, baixou-se apoiando-se num dos joelhos, e apalpou o chão levemente húmido. Os vários líquidos não tinham tido tempo suficiente para secarem, mentalmente começavam a surgir ideias vagas. Junto dos detritos de vidro apresentava-se um mini bar caseiro de onde faltavam algumas garrafas, parte delas jaziam despedaçadas à volta do seu joelho. Ficou alguns instantes a observar o balcão de madeira brilhante e forte, passou os dedos ao longo da bancada e nenhum sinal lhe veio para às mãos, estava suspeitosamente limpo. Desviou-se do balcão e observou melhor a sala. Era a maior divisão da casa, assim descobriu mais tarde e devido às suas duas grandes janelas era abraçada todos os dias por uma luz diurna forte. Entre as duas janelas, junto à parede, estava a mesa de jantar, ao fundo era a parte do lazer inde um móvel preto abrigava um plasma avançado no preço com grandes finas colunas de som ao lado. Junto à televisão repousava um sofá de cabedal negro e à direita, na parte mais escondida, situava-se a estante tapando uma parede beje, a cor omnipresente em toda a casa.
O seu olhar voltou para o dia presente e continuou a analisar o que observava. Ao longo do corredor interno da sala reparou em pequenas gotas de sangue que iam desde os pedaços de vidro e onde estava o corpo morto. Olhava para os pingos vermelhos tentnado encontra uma lógica mas que lhe escapava por entre os dedos. As cadeiras à volta da mesa estavam caídas para todos os lados. Mais ao fundo a parte de lazer parecia intocada, o sofá estava impecácel sem um único vislumbre de protecção, à sua direita a janela estava fechada mas partida de uma forma que indicava violência e à sua esquerda estava a estante ainda colada à parede mas com alguns livros espalhados pelo chão e outros caídos nas prateleiras.
No meio da sala estava o corpo inerte e rígido do morto coberto por um pano branco. Aproximou-se com delicadeza mas permaneceu de pé a observar o pano. Fitou o corpo, percorreu com o olhar os salpicos de sangue e chegou aos estilhaços de vidro perto da porta escancarada, viu as duas janelas, ambas fechadas mas só uma partida, reparou nas outras portas da sala fechadas para o resto da casa e observou a estante fora da sua normalidade. À medida que o seu olhar varria a sala a sua mente formulava ideias hipotéticas de sub-hipóteses e hipóteses contraditórias através de teorizações suspensas num ar de ignorância. Deu alguns passos para trás sem deixar de inspeccionar aquela parte da sala com o seu olhar, deu mais voltas ao espaço conhecendo-o intimamente. Parou junto da estante longamente e no chão, quase escondida, uma caneta repousava discretamente sozinha."

2008-10-31
23h54

Um livro inacabado... [pág.22]

"Um cheiro perfumado invadia-lhe as narinas, provocando-lhe uma sensação de adormecimento. Estava deitado na relva verdejante benhado pela luz do dia. Abriu os olhos, virou-se, e a certa distância do lugar onde estava via a água cristalina de um lago. Por baixo de uma árvore, estava uma cadeira com um vulto sentado. Intrigado mas curioso, reparou que na cadeira estava sentada uma mulher idosa que segurava um papel na sua mão direita. A senhora permanecia imóvel. Achou estranho a rigidez da mulher e aproximou-se lentamente. Tentou soltar uma palavra mas, estranhamente, nenhum som saiu. Olhou para as suas mãos e viu-as cheias de sangue. Horrorizado, olhou para o resto das suas roupas, também elas ensaguentadas. Petrificado de medo, tentou gritar a plenos pulmões.
Acordou sobressaltado e a ofegar pesadamente. Passou a testa da sua mão direita pela sua fronte e limpou-a do suor que a cobria. Tentou controlar a respiração e enterrou a cabeça nas mãos. O escuro transformou-se numa claridade imensa."

A mirror of an heart

"Porque se insiste em ir ao fundo da questão? Ir ao mais âmago pormenor de compreensão, bombardeamento de perguntas difíceis que só podem ter respostas complicadas, explicações desconexas espelho de algo já por si estranho e complicado. Algo que se cria é porque tem bases para se criar, não surge por acaso, nada acontece por acaso, constrói-se por si. Há amâgos e divagações guardadas a sete chaves que não podem ser soltas, mas mesmo assim tenta-se compreender, curiosidade e supostos "interesses" tentam remexer no que não pode ser remexido e a confusão instala-se. A desordem torna-se ainda mais confusa tentando perceber o porquê de tanto escalavrar... Não se pode considerar medo de responder, é uma questão de protecção. Há caixas de pandora que não podem ser abertas, deve-se evitar abrir. Elas guardam algo que pretende sair mas que não pode antes do tempo correcto...sob pena de..."

2008-10-19
03h01

Inédito [3ª parte]

Uma forte brisa fresca percorreu a atmosfera levando consigo uma fina névoa branca. Da ponta do seu cigarro a chama silenciosa e invisível consumia os últimos centímetros de papel e folhas até chegar ao filtro. O seu passo era lento e demorado, sinal de uma mente confusa e desordenadamente complexa, tentando colocar as peças dos últimos dias, no puzzle desconexo que tinha descoberto. As pedras da calçada apresentavam-se no seu branco sujo habitual cobertas por plásticos perdidos, beatas soltas, pedaços castanhos mal cheirosos, e os seus sapatos negros mal lustrados e podres pelo uso constante. O seu polegar direito tocou duas vezes na ponta do filtro e os últimos restos de cinza caíram como pingos de chuva miudinha no chão.
Parou ao pé de uma esquina bem iluminada pela forte luz diurna da tarde. Passou os dedos pelo nó da gravata desapertando-o milimetricamente. Sentia-se enforcado por aquela obrigação, por uma visão redutoramente retrógrada da vida em sociedade, por uma cambada de inegrúmenes que defendiam a capa da velha escola escondendo-se atrás dela para a trair por trás com um sorriso aberto. Deixou a ponta do cigarro cair na pedra da calçada, colocou o pé direito sobre ela e esmagou-a com a gentileza de um amante apaixonado pela sua perdição mortal. Fechou os olhos, sabia o que tinha que a seguir à esquina, mas por enquanto não a queria ver.
Do outro lado da rua um transeunte incógnito percorria o passeio a uma velocidade estonteante. Os seus pés engoliam terreno, a sua mão direita compunha freneticamente a alça da mochila que escapava teimosamente, de segundo a segundo a sua cabeça olhava repetidamente para trás. De repente um grande autocarro amarelo surgiu ao fundo da rua com boa velocidade e o transeunte começou a correr, a corrida da ralé mediana que vive com os trocos contados e o credo na boca. Durante a corrida o transeunte passou por um banco de jardim onde repousava uma idosa. O seu olhar era baixo e perdido, de tempos a tempos levantava-o observando em volta, as folhas que nadavam no chão impulsionadas pelo vento, pombos que circulavam impávidos e serenos, uma resignação raquética e os contornos de um caixao que se desenhavam, imperceptíveis, cada dia que passava por aquele corpo idoso.
Abriu os olhos e compôs o nó da gravata confiando no tacto dos seus dedos. Virou-se para a esquina e atravessou-a, colocando as mãos dentro dos seus bolsos. À sua frente um imponente edifício branco destacou-se no horizonte. Um grande pórtico de madeira castanho como singela e tímida porta de entrada, vitrais dominavam as zonas laterais e no topo, aquilo que tanto abominava e estranhava como símbolo de toda a podridão daquela instituiçã, uma cruz. Várias fiéis entravam e saíam da igreja aquela hora normalissíma a meio da tarde, mas nenhum pareceu reparar no homem moreno de fato e gravata que subia a longa escadaria em direcção à entrada.
À frente dos seus olhos estava a enorme porta de madeira a fitá-lo no alto da sua imponência. No meio, à sua altura, encontravam-se vários editais e panfletos protegidos por uma caixa de vidro. Notícias de jornal sobre a paróquia, calendários de missas e de celebrações litúrgicas afins, horários da catequese para os miúdos, uma míriade de objectos que não justificavam o porquê das provas apontarem para este local especifíco. À sua direita uma pequena porta abriu-se revelando um fiel a sair e uma entrada para o interior da igreja. Aproveitou a deixa e atingiu a porta num salto antes de se fechar por si. Entrou dentro da igreja e fechou a porta, observando atentamente o interior. Inúmeras velas iluminavam o amplo espaço coberto por bancos corridos de madeira em conjunto com a luz natural vinda dos vitrais. Várias esculturas religiosas decoravam as paredes acompanhadas por pinturas bíblicas. Os seus passos ecoavam na laje fria da igreja, golpes de faca gélida dum herege no coração da religião. Fitava as expressões mudas das estátuas desprezando cada pintura alegórica de um ideal de fé caduco e ultrapassado pelas próprias acções e omissões daquela instituição milenar. Olhava para os vários fiéis ajoelhados rezando para um pobre homem coitado pregado a uma mera cruz de madeira e sentia-se ultrajado por aquelas pessoas ainda acreditarem na hipocrisia proferida todos os domingos no alto daquele púlpito solitário, na insanidade mental que a expressão "vontade de Deus" provocava nos homens mais fanáticos. Ao fundo viu um grupo de crianças ser conduzidas por dois catequistas e não conseguiu evitar um abanar de cabeça e um olhar indignado, dentro daquelas salas internas uma espécie de lavagem cerebral iria ter lugar. Era nestas alturas que se sentia espantado e zangado consigo próprio por ter sido capaz de ter acreditado numa farda hedionda coberta por promessas de paraísos inexistentes e perdões ridículos. Se não fosse a morte abrupta e violenta da sua mulher e único amor em toda a vida, ainda estaria afogado num mar de hipócritas sujos em termos mentais.
O seu passeio pelo interior da igreja, embrenhado nos seus pensamentos mais profundos, terminou junto ao altar onde podia ver com toda a clareza o corpo e a expressão do tal homem crucificado. Supostamente ele devia-se ajoelhar perante aquela figura e fazer um sinal com as mãos, mas simplesmente virou as costas e soltou um riso irónico. Nunca se rebaixaria perante o criador de algo tão hediondo e falso. Fé, é preciso ter fé, insistiram os seus amigos mais próximos nas horas anteriores à morte dela. Não foi a fé que a salvou, ninguém a podia ter salvo. A partir dessa noite perder a sua fé, substituída por um ódio tremendo a todos os edifícios iguais aquele. Acima de tudo, a Igreja repugnava-o e sentia-se um herege dentro daquele espaço.

2008-10-09
01h17

Inédito [2ªparte]

A sua pele levantou-se com um arrepio ao ouvir o chiar dos travões ao estacionar o seu carro. Rodou lentamente o manípulo e a janela ao seu lado subiu com esforço para não mostrar o vidro sujo. Abriu a porta e empurrou-a para ter espaço de saída e lançou o seu corpo em direcção ao mundo que se desenvolvia naquela rua.
Fechou a porta do carro atrás de si com um estrondo raquético e guardou a chave dentro do seu bolso direito, depois de desferir um círculo à volta do dedo. Apertou o botão do meio do seu fato e compôs o nó feito em três tempos sobre um vidro partido quadrado colocado no tampo da uma mesa. Olhou para ambos os lados da rua à procura de movimento que perturbasse a passagem rápida da estrada até ao outro passeio. Mergulhou as mãos dentro dos bolsos das calças e iniciou um longo dia de trabalho.
À medida que atravessava a estrada, no seu passo lento, os seus olhos esforçavam-se por captar qualquer pormenor que lhe pudesse interessar. Uma senhora idosa subia com extrema dificuldade a rua carregando um saco cheio de compras e, num esforço sobrehumano, apoiando-se numa bengala de madeira escura. A cada dois passos seguia-se uma paragem momentânea, segundos preciosos de oxigénio para um corpo à beira do seu destino final. A mulher pressentiu algo nas suas costas, era um rapaz novo que subia a rua em passo acelerado, privilégio próprio de quem anda pelas vielas da ingenuidade adolescente. O seu olhar captou a idosa a esboçar um movimento trémulo a pedir por auxílio mas o jovem ultrapassou-a incólume aos apelos, dois phones permaneciam colados aos ouvidos. A senhora, incapaz perante a música estridente que a impediu de ser ajudada, voltou-se para o seu pequeno mundo raquético e insignificante perante a sociedade, e prosseguiu a sua subida demorada. Antes de chegar ao passeio, sentiu algo a estilhaçar-se por debaixo do seu pé esquerdo, desviou o seu sapato preto e viu uma seringa já usada. Levantou o seu olhar que encontrou o desfile de casas negras de poluição, sujas de pobreza e miséria e imediatamente percebeu. Subiu o passeio num salto e deparou-se com a fita azul e branca, listrada, da polícia que selava a entrada de um dos prédios. Um agente forte, barriga de cerveja proeminente, bigode farfalhudo e chapéu descaído abordou-o, pedindo a identificação. Levou a sua mão ao bolso interior do casaco e retirou a sua carteira abrindo-a de par em par. Os seus olhos prestaram atenção à fachada do prédio, várias janelas estavam partidas ou inclusivé abertas e pombos aproveitavam para compor os seus ninhos. O guarda soltou um grunho afirmativo deixando o senhor inspector ultrapassar a fita e entrar no prédio.
A primeira visão que teve foi de uma porta escancarada e um corredor mal iluminado que subia em escadas estreitas. Para além de mal iluminado, um forte cheiro nauseabundo dava as boas vindas calorosas aos novos visitantes que tivessem a ousadia de subir aqueles degraus. Assim que colocou o pé no primeiro degrau, sentiu a madeira a desfazer-se e um suspiro enfadonho saíu da sua boca. Esforçou os seus olhos tentando vislumbrar algo no cimo das escadas mas a sua tentativa foi infrutífera. Recuou dois passos até estar novamente no passeio sob a luz matinal e sacou do seu maço de cigarros. Abriu-o e viu que só tinha quatro pequenos e finos assassinos inertes prontos a invadir os seus pulmões. Enquanto pegava num esforçava-se mentalmente para não pensar no sítio onde poderia restabelecer o seu vício. Ao mesmo tempo que desenrolava o seu vício habitual de sacar o cigarro, colocá.lo nos lábios, acender o isqueiro e ficar segundos a olhar para a chama dançante, uma figura feminina surgiu a descer a rua. A sua visão fixou-se naquele vulto, qual predador a fixar a sua presa. Cabelo moreno comprido esvoaçante ao ritmo do vento, brilhando sob a luz diurna, olhos claros concentrados nas pedras da calçada, passo seguro e decidido, calças de ganga descaídas mostrando perigosamente partes fechadas ao comum dos mortais no seu passeio diário incógnito, top curto revelando um dia de calor e muitos olhos postos em cima. Um bafo prolongado enquanto via aquele corpo a rodear a atmosfera daquela rua, inalou uma penúltima vez e ela passava justamente do outro lado da rua, uma mão compôs o cabelo, formou círculos de funo num último bafo e a sua silheuta recuada mostrou-se unicamente, deixou cair o cigarro e pisou-o morrendo a chama, ela virou uma esquina e desapareceu.

Inédito [1ª parte]

A porta rangeu sobre as dobradiças soltando um fino ruído que lhe magoou os ouvidos. Os seus passos ecoavam no soalho de madeira, à medida que percorria o corredor de entrada. À sua direita desenhou-se uma porta entreaberta, empurrou-a e entrou numa divisão branca. Rodou a torneira e a água começou a fluir num pequeno fio, cada vez maior e mais intenso até formar um remoinho no seu término, à procura de uma saída estreita para a sua violência líquida. Mergulhou as mãos dentro da água fria que imediatamente se encheu de um líquido vermelho, espalhando-se languidamente e misturando-se com aquele líquido azul transformando a sua essência, ao mesmo tempo que apagava uma parte do seu percurso sinuoso. Pegou numa toalha e limpou calmamente as mãos, passava com precisão cada fio de tecido por cada pedaço da sua pele. Deixou a toalha cair no chão, aos seus pés e saiu da divisão branca. Os sapatos continuavam a ecoar no soalho, dirigindo-se para uma outra divisão mais ampla, a sala. Os seus passos pisaram uma fina carpete que abafou a sua presença e seguiu para uma cadeira próxima. Colocou a sua mão no cimo e puxou-a para trás até ter espaço suficiente. Sentou-se pesadamente e tirou com dificuldade os sapatos apertados, atirando-os para uma ponta da sala. Um ligeiro ruído de tecido a arranhar ouviu-se e uma gravata caiu leve como uma pena no chão, ao lado da cadeira. Uma das suas mãos mexeu no bolso lateral esquerdo e retirou um maço de cigarros. A outra mão procurou freneticamente um isqueiro e assim que o encontrou, levantou as pernas e pousou os pés no tampo da mesa. Desapertou o botão cimeiro da camisa e pousou o filtro sobre os seus lábios, o inferior estava ligeiramente rasgado. O escuro da noite envolvia o seu espaço, o seu espiríto e a sua alma, levou o isqueiro ao cigarro e rodou com avidez a roda provocando faísca. Uma chama palpitante e insegura levantou-se do seu esconderijo e iluminou por instantes uma face com um ligeiro corte que já não sangrava. A chama acendia aos poucos o cigarro queimado na ponta, inalou uma primeira vez e soltou um longo bafo contínuo. Ficou a observar a chama que ainda saía do isqueiro, dançava ao som do vento, acompanhava os movimentos da mão que rodava o isqueiro em várias direcções e não queria morrer. Deixou o dedo escorregar e a chama extinguiu-se num ápice, ao mesmo tempo que guardava o isqueiro no bolso. Continuava a colocar o filtro do cigarro na boca, sentindo o fumo a percorrer o seu corpo, alimentando o seu espírito e relaxando os seus músculos. Inalou uma última vez e largou círculos de fumo que ele não via devido à escuridão, mas que sabia estarem lá. O cigarro estava no fim, não podia ser mais aproveitado e não tinha o cinzeiro à beira. Deixou a cabeça cair para trás, levou um dos dedos a uma das mãos procurando um pequeno corte que mal se notava mas que ainda estava fresco, fechou os olhos e pousou a ponta quente do cigarro na ferida. Esboçou uma ligeira cara de dor ao sentir o primeiro impacto, mas à medida que rodava o cigarro e o apagava, a dor era substituída por um bem estar e um alívio físico. Atirou o cigarro morto para o chão e deixou cair a mão afectada para o meio da atmosfera caseira, totalmente solta no ar.

2008-09-26
13h06

Um livro inacabado... [págs.91,92]

A sua cara era acariciada por algo fresco e suave. As suas mãos percorriam o espaço à sua volta e sentiam uma textura húmida e regular. A sensação de frescura macia alegrava-o provocando um largo sorriso na sua cara. Abriu os olhos e viu uma grande extensão de planície verdejante à sua frente. Não se conseguia recordar porque tinha adormecido naquela manta relvada, só se lembrava que estava ali há horas. Virou-se da sua posição deitada e sentou-se. À sua volta toda a paisagem era dominada pela relva onde tinha adormecido, ao longe um lago cobria o horizonte rodeado por árvores espaçadas entre si. Mesmo atrás de si uma cadeia de montanhas formava-se majestosa na sua imponência com dois cumes a destacarem-se dos restantes. Colocou uma das mãos à frente dos seus olhos, servindo como tala, e cerrou os olhos tentando descobrir onde estava. Não conhecia a região, procurava por algum aglomerado populacional perto mas não vislumbrava nada. Preocupado, levantou-se definitivamente e começou a caminhar paralelamente ao lago. Percorreu uma distância considerável sem encontrar sinais de vida humana, à sua esquerda o lago fez uma viragem brusca para dentro e à sua direita o som de um rio chegou-lhe aos ouvidos. Prosseguiu o seu andar sempre com a referência do som do rio ao seu lado direito e finalmente viu, ao fundo, a ténue linha de uma estrada. Reconfortado por ter encontrado algo que procurava, desviou os seus passos em direcção ao rio que ouvia à distância. O rio parecia provir das montanhas que se mostravam ao fundo não tão majestosas devido ao caminho já percorrido. Aproximou-se da margem no sítio onde o curso de água fazia uma viragem acentuada para a direita, continuando em frente perdendo-se no horizonte. A sede ganhou força e dirigiu-se para a beira da margem formando uma concha com as mãos e bebendo a água do rio. A frescura do líquido azul deu-lhe forças e uma sensação de repouso. Limpou a sua boca à manga do casaco e ao fazê-lo virou a cara para a sua esquerda reparando num vulto ao longe.
Intrigado por ter encontrado alguém num sítio tão ermo começou a caminhar na sua direcção. Subiu uma pequena elevação rodeada por árvores frondosas e que terminava numa queda brusca sob pedras pontiagudas que surgiam timidamente na superfície do rio. Aproximou-se cautelosamente para não ser detectado, escondeu-se atrás de uma árvore próxima e reparou que era uma figura feminina adulta. Era baixa, um cabelo castanho escuro mostrava-se desalinhado, estava imóvel junto à queda abrupta no fim da elevação. Ela continuava parada sem se aperceber que ele a observava. Os seus braços estavam caídos ao lado do corpo e nenhum músculo se parecia mover. Quanto mais olhava para a figura feminina mais intrigado ficava sem conseguir perceber quem era ou o que estava ali a fazer. Saiu detrás da árvore e começou a caminhar, muito lentamente, na direcção dela. A figura continuava muda e serena, aparentemente sem se aperceber da presença dele. Estava a dois palmos de distância dela, conseguia reparar nos vários pormenores do seu vestido, no seu cabelo ordenadamente desalinhado num padrão irregular e parou de caminhar. Estendeu a sua mão até ao braço direito da figura feminina tentando tocar-lhe mas o seu movimento foi interrompido pela brusquidão de algo inesperado. A figura abriu os braços lentamente e começou a correr em direcção ao abismo. A sua única reacção foi seguir a mulher para a impedir de cair mas só teve tempo para parar na beira da elevação segurando-se nas pontas dos dedos dos pés. Os seus olhos observaram horrorizados a figura feminina lançando-se num voo silencioso que só parou na água coberta por pedras pontiagudas.
"Quem não se conhece a si mesmo nem ao seu inimigo, em 100 batalhas nunca sairá vencedor"