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terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Inédito [1ª parte]

A porta rangeu sobre as dobradiças soltando um fino ruído que lhe magoou os ouvidos. Os seus passos ecoavam no soalho de madeira, à medida que percorria o corredor de entrada. À sua direita desenhou-se uma porta entreaberta, empurrou-a e entrou numa divisão branca. Rodou a torneira e a água começou a fluir num pequeno fio, cada vez maior e mais intenso até formar um remoinho no seu término, à procura de uma saída estreita para a sua violência líquida. Mergulhou as mãos dentro da água fria que imediatamente se encheu de um líquido vermelho, espalhando-se languidamente e misturando-se com aquele líquido azul transformando a sua essência, ao mesmo tempo que apagava uma parte do seu percurso sinuoso. Pegou numa toalha e limpou calmamente as mãos, passava com precisão cada fio de tecido por cada pedaço da sua pele. Deixou a toalha cair no chão, aos seus pés e saiu da divisão branca. Os sapatos continuavam a ecoar no soalho, dirigindo-se para uma outra divisão mais ampla, a sala. Os seus passos pisaram uma fina carpete que abafou a sua presença e seguiu para uma cadeira próxima. Colocou a sua mão no cimo e puxou-a para trás até ter espaço suficiente. Sentou-se pesadamente e tirou com dificuldade os sapatos apertados, atirando-os para uma ponta da sala. Um ligeiro ruído de tecido a arranhar ouviu-se e uma gravata caiu leve como uma pena no chão, ao lado da cadeira. Uma das suas mãos mexeu no bolso lateral esquerdo e retirou um maço de cigarros. A outra mão procurou freneticamente um isqueiro e assim que o encontrou, levantou as pernas e pousou os pés no tampo da mesa. Desapertou o botão cimeiro da camisa e pousou o filtro sobre os seus lábios, o inferior estava ligeiramente rasgado. O escuro da noite envolvia o seu espaço, o seu espiríto e a sua alma, levou o isqueiro ao cigarro e rodou com avidez a roda provocando faísca. Uma chama palpitante e insegura levantou-se do seu esconderijo e iluminou por instantes uma face com um ligeiro corte que já não sangrava. A chama acendia aos poucos o cigarro queimado na ponta, inalou uma primeira vez e soltou um longo bafo contínuo. Ficou a observar a chama que ainda saía do isqueiro, dançava ao som do vento, acompanhava os movimentos da mão que rodava o isqueiro em várias direcções e não queria morrer. Deixou o dedo escorregar e a chama extinguiu-se num ápice, ao mesmo tempo que guardava o isqueiro no bolso. Continuava a colocar o filtro do cigarro na boca, sentindo o fumo a percorrer o seu corpo, alimentando o seu espírito e relaxando os seus músculos. Inalou uma última vez e largou círculos de fumo que ele não via devido à escuridão, mas que sabia estarem lá. O cigarro estava no fim, não podia ser mais aproveitado e não tinha o cinzeiro à beira. Deixou a cabeça cair para trás, levou um dos dedos a uma das mãos procurando um pequeno corte que mal se notava mas que ainda estava fresco, fechou os olhos e pousou a ponta quente do cigarro na ferida. Esboçou uma ligeira cara de dor ao sentir o primeiro impacto, mas à medida que rodava o cigarro e o apagava, a dor era substituída por um bem estar e um alívio físico. Atirou o cigarro morto para o chão e deixou cair a mão afectada para o meio da atmosfera caseira, totalmente solta no ar.

2008-09-26
13h06

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