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terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Inédito [5ª parte]

O carro parou no sítio mais negro que se podia encontrar na rua. O candeeiro mais próximo distava a cinquenta passos e soluçava por ter um lampejo de luz por cinco segundos. Uma mão invisível, escondida pelo breu da noite rodou a chave da ignição e o motor adormeceu numa hibernação temporária. As ruas estavam desertas de vida, de luz, de sons, um buraco negro citadino fazia-se sentir naquele pequeno espaço onde um condutor enigmático estacionou um carro misterioso. Finalmente o candeeiro teve os cinco segundos de luz contínua que tanto ansiava, o suficiente para descobrir um carro cinzento e pedaços de dedos que voavam no espaço interior do automóvel.
A sua respiração era suave e silenciosa fruto de uma paz interior que gostava de prolongar. Naqueles cinco segundos ténues, os dedos da sua mão direita foram revelados a dirigirem-se para o cimo do volante. Os seus ouvidos captaram o tamborilar vigoroso e paciente dos dedos no volante, os seus olhos permaneciam escondidos por detrás de um pedaço de pele. A sua mão esquerda remexeu num dos bolsos das calças à procura de algo. Os seus olhos abriram-se imperceptíveis por detrás do cobertor nocturno estimulados por algo dentro do bolso. Algo foi retirado, os dedos da mão esquerda trabalhavam mudos rodando o início de algo. A certa altura os dedos pararam de desenroscar e pousaram algo no colo masculino, algo saiu de dentro de algo com um som milimétrico. Novamente o candeeiro voltou a ter cinco segundos de luz e um tubo branco "Gran Corona" revelou-se. A luminosidade desapareceu e com ela a possibilidade de ser descoberto. Os dedos da mão esquerda pegaram em algo e colocou-o por entre os lábios, os dedos da mão direita pararam de tamborilar e esticaram-se para apanhar algo perto do volante. O barulho de uma pedra de isqueiro fez-se ouvir e com ele surgiu uma chama a bailar. Colocou-a na ponta do charuto e imediatamente inúmeros pontos laranja pontilharam a ponta do produto cubano. A chama era ténue e não conseguiu revelar mais do que dois olhos castanhos, a ponta de um nariz, dedos curvilíneos a rodar o charuto e o próprio a ser queimado.
A rua continuava literalmente morta, o buraco negro continuava a sugar todo o tipo de vida e de luz que o candeeiro se engasgava por obter. A única excepção era um pequeno ponto laranja perdido no meio da escuridão e sem conseguir iluminar algo. O ponto laranja movimentou-se dentro do carro e por segundos ficou mais brilhante queimando folhas de "El Comandante". Assim que sentiu o bafo do charuto fechou os olhos e deixou-se contaminar por aquela névoa que o matava à medida que o relaxava. Uma noite atípica de trabalho iria começar e era daqueles dias nocturnos que não lhe apetecia mesmo nada ter. Já tinha observado bastante, reunido todos os pormenores, todos os vícios, todas as imperfeições possíveis e imagináveis que pudessem deitar tudo a perder. O charuto acalmava-o mas não se comparava a outra coisa, algo que ele necessitava urgentemente como uma droga viciante para o acompanhar pelos dedos enquanto pensava. E nesse preciso momento ele pensava enquanto o seu olhar cravava-se em algo perdido no horizonte mas que ele sabia perfeitamente que estava lá. No fundo o espesso manto nocturno era a sua cobertura ideal e o disfarce preferido, sem a sua ajuda nem sequer se tinha dado ao trabalho de sair de casa.
Mais uma vez a ponta laranja do charuto acendeu-se queimando ainda mais folhas de Havana. No mesmo momento, inesperadamente, o candeeiro conseguiu atingir dez segundos de luz pública forte. Nesse raro espaço de tempo o carro cinzento misterioso tornou-se num banal Peugeot 206 e o condutor incógnito, permaneceu incógnito. À medida que puxava pelo charuto fez com que o banco descaísse totalmente salvando-o da luz. Afinal, tanto tempo de observação tinha-lhe dado o conhecimento exacto do estado de coma do candeeiro e as raras vezes em que ele recuperava a consciência. Assim que o candeeiro apagou-se voltou a subir o banco, a tamborilar os dedos da mão direita no volante e a colocar o charuto entre os lábios reavivando ainda com mais força a pequena ponta laranja. Nesse instante os olhos castanhos foram iluminados, a olhar para um exterior negro e vago e assim que a chama laranja atingiu o olhar, este transformou-se e uma névoa vermelha passou pelos olhos, uma nuvem vermelha sangrenta.

2008-11-02
03h52

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