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sexta-feira, 14 de maio de 2010

Retirado do baú das memórias

Um dos textos mais antigos revisitado...

Em Roma sê Romano

"Ele despertou do seu torpor, com um violento bafo de areia na cara. Esfregou os olhos e recuperou os seus sentidos. O Coliseu estava cheio, sem um único lugar vazio, ao seu lado um velho romano assistia extasiado ao espectáculo que decorria. Os seus olhos estavam esbugalhados de extâse, as suas feições contorciam-se à velocidade das hormonas humanas mais selvagens, um sorriso lunático cravava-se a cada segundo. Em baixo na arena, dois gladiadores lutavam contra a morte, degladiavam pela glória popular sedenta de sangue. O Coliseu fervilhava num barulho constante, o público vibrava a cada golpe, urros uivavam por cada gota de sangue espalhada pela arena escaldante. Um cheiro a suor, fedor de morte, de sangue coalhado vivo, vermelho na arena, invadia a atmosfera. O lado selvático cresceu quando um dos gladiadores cortou uma das mãos ao outro. O velho que se sentava ao seu lado levantou-se de rompão, erguendo os braços num grito louco de extâse, onde se lia o prazer da morte personalizada. A mão do gladiador estava empapada em sangue, repousada no chão, o gladiador cambaleava em redor dum pântano vermelho. Sentado do seu lugar, ouviu o barulho da multidão crescer sonoramente, gritava-se pela morte, exigia-se sangue e fedor putrefacto. O gladiador sem mão ajoelhou-se sem forças e foi então que ele o viu, o Imperador, na sua impecável túnica branca, a levantar-se e a estender o braço. Após uma leve hesitação, o polegar baixou, a multidão silenciou-se, esperando. Algo brilhante viajou pela atmosfera e uma cabeça rolou. O culminar da tempestade popular atingiu o seu limite, uma enorme onda de raiva alegre e regozijada encheu-lhe os ouvidos, a morte era celebrada. Ao seu lado, no momento em que a cabeça rolou lá em baixo na arena, o velho rugiu de extâse, os seus olhos bebiam o sangue espalhado em gotas e poças, a língua passou demoradamente pelos lábios, saboreando. O ritual cumpria-se e ele sabia que não lhe podia escapar."

sábado, 8 de maio de 2010

Rascunhos

O tédio instala-se, a depressão ameaça com um gesto mais arrogante, o tempo passa por uma simples fresta aberta tão estreita quanto a mais ruela das vielas e a escuridão assola a minha alma. Luzes apagadas, noite que se desenrola fora do meu tempo,vidas que teimam em passar para lá da janela. A iluminação citadina retira o esplendor do céu estrelado, deixando apenas a cruel nudez das vidas passadas, das vidas desfeitas, dos passos arrastados por pedras da calçada, arrastando consigo o arrastar de um tempo incógnito escondido por detrás do cobertor negro que cobre a sua pele negra de sujidade, deixando para trás de si apenas e só o esquecimento de si próprio, o esquecimento da própria sociedade sobre ela mesma, enrolada sobre a espiral de esquizofrenia que a amarra e a prende a um destino inevitável de condenação própria e tresloucada, fugindo de uma salvação tão perto mas, ao mesmo tempo, tão longe. Inaudita continuas tu no teu passo, passando por debaixo da minha janela, imune à escrita dedilhada da minha alma, sem saberes que a tua passagem marca pela sua fugacidade, pelo seu mistério, pela arrogância do som que expeles para o mundo exterior corporizado num salto alto que usas para fingir a tua baixa estatura, fazendo crer que és mais alta do que realmente não és. A tua única vivência das aparências por detrás dessa máscara fria de arrogância que usas para esconder a tua própria fragilidade de alma e coração, espartilhada por anos e mais anos de combates frenéticos e surdos, onde o estridente do sofrimento apenas se revela num grito assolapado de silêncio mas munido de uma faca que te trepassa o coração como se de mil lâminas fossem, empurradas pela força invisível do romantismo negro.

Chegas a casa, pensando que, encerrada no teu próprio mundo, te consegues livrar das amarguras que carregas silenciosamente dentro de ti. Procuras paz num copo de água, mas ele não é suficiente, é demasiado puro para a sujidade da tua alma. Então procuras algo mais pesado, um golo de vodka polaco barato, o qual engoles a seco e com um esgar de desprezo pessoal porque a última vez que o bebeste foi quando as mil lâminas se preparavam para te trespassar mais uma vez. Mas a bebida também não te serve, é barata e tu não és uma daquelas putas baratas que tudo faz por uma ninharia de dinheiro, vendendo a sua vergonha para ter uma honra pessoal esmagada pelo olhar de lado e enojado da sociedade materialista que mais fácil se preocupa com o novo verniz e a nova consola, do que para um humano em processo de decadência irreversível. Largas a bebida pesada e apenas te concentras em ti, no teu próprio processo destrutivo feminino. Ouves a casa inteira, grande o suficiente para uma família de seis, mas apenas suficiente para te esmagar ainda mais perante a tua insignificância solitária rodeada por aquele silêncio atroz que te faz cambalear o passo por caminhos que conheces melhor que a palma das tuas mãos. Não consegues aguentar mais, a roupa prende-te, tira-la para te sentires mais à vontade, para continuares a viver na tua própria ilusão de que bastam simples gestos tão rotineiros para apagar o cancro romântico que vive dentro de ti, consumindo-te a cada minuto, a cada dia, a cada semana em que te sentes a culpada por não conseguires ser aquilo que sempre achaste ser e sempre ouviste dizer seres.

Posso estar longe de ti, posso escrever sem te conhecer, mas os teus passos metem-me dentro da minha própria imaginação complicada, descrevendo-te sem te querer descrever, analisar-te sem querer analisar-te, ver-te sem querer observar-te, sentir-te sem querer que o sintas. Fechas a porta do teu quarto, corres as cortinas e apenas queres pensar em ti. Passeias pelo teu próprio quarto, pela tua própria jaula transformada em santuário momentâneo a todos os momentos infinitos, onde tentas expiar os teus pecados românticos junto da figura invisível do sofrimento, aquele ser coberto por uma capa negra e olhar negro que não teima em desaparecer mesmo nos momentos mais felizes. Os teus pés descalços passeiam o teu corpo magro e belo, tu és uma deusa grega com o teu olho azul de pérola e o teu sorriso de Citereia, mas o conhecimento da tua própria beleza esmagadora e irresistível torna-te na mais frágil das criaturas. Leste demais Camilo Castelo Branco, o teu ódio por ele apenas te transformou numa seguidora tão fiel do romantismo mais extremado que há naquelas linhas de repulsa por serem tão belas e tão mortíferas ao mesmo tempo. A tua dança invisível de salvamento nada mais é do que a última das tentativas de tentares aliviar o peso que te vai na alma, â ancora que te puxa teimosamente para o fundo do mar, empurrando-te continuamente para o abismo enquanto tentas lutar desesperadamente, nadando contra a inevitabilidade da queda. És um anjo, arrebatador, raro, diferente, mas a tua originalidade perde-se na choldra torpe esmagadoramente maioritária que domina a sociedade. Esmaga-te como se fosses um vírus ameaçador para o sistema instalado, não te poupando e rindo-se na tua cara ao ver-te, sofredora, a esvaíres-te num sangue romântico que te contamina como um veneno.

Sentas-te na cama, deitas-te na cama expondo a perfeição imperfeita do teu corpo, enterrando a tua cara na suavidade da roupa que cobre o teu leito de amor e de facas cortantes. Não consegues enfrentar o mundo, não consegues passar todo o dia a fingir que possuis uma força inabalável quando, na verdade, és apenas uma pena frágil que sobrevoa os céus e tão vulnerável à mais pequena brisa mais forte que te destrói em menos tempo do que aquele em que finges um orgasmo para dares a entender que ainda pensas sentir algo, não mais do que uma mentira pegada e sem sentido, a desculpa perfeita para manteres uma utopia, um castelo de cartas sem fundação, um pedaço de areia que te foge continuamente pelos dedos mas que tu não queres admitir no teu íntimo mais profundo. A noite passa, a vida passa, os minutos morrem e tu continuas igual, mas desta vez, dominada pelo sono e inconsciente para o mundo real. Já não ves o pobre que passeia pela tua rua apenas iluminada por um candeeiro fraco que tremelica de segundos em segundos, com medo de mostrar o degredo que o rodeia. És uma gota num oceano tremendo de indiferença, tentas-te proteger mas não consegues. O romantismo tornou-te numa fraca, quando pensavas que estavas mais forte. No fundo, tu sabes, mas não queres admitir porque fazê-lo é desmoronar por completo todo o teu mundo construído à volta de uma ideia que te fez viver até o ser que se senta ao teu lado e te faz festas invisíveis, se lembrou de te fazer companhia para todo o teu sempre. Sim, a tua beleza angelical matou-te