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domingo, 26 de julho de 2009

Inédito [7ª parte]

A noite corria silenciosa pela rua onde o sussurro da escuridão se fazia sentir, na sua imensidão calma. Parcas luzes iluminavam a vida nocturna escondida por detrás daquele manto negro, espesso como o tapete persa, mas ao mesmo tempo transparente, qual tecido de cetim leve que escorrega pela pele de forma suave e doce. Poucos ou nenhuns passos faziam-se ouvir aquela hora da noite, um ou outro mais veloz que assinalava a pressa de chegar a casa cogitando ao mesmo tempo razões infundadas para o atraso inaudito. Outro mais lento chamou-lhe a atenção, eram com certeza sapatos altos, até arriscaria que eram muito parecidos com uns que tinha dentro do armário e que apenas tinha usado uma vez, numa tentativa frustrada de sucesso nocturno dentro de quatro paredes iluminadas por um som estridente, a que muitos apelidam de house music. Concentrou toda a sua atenção naquele passo lento, naquele som de saltos altos finos tocarem de forma ritmica no chão, qual compasso com o bater do seu coração. Um bater pesado que ainda reflectia o stress do final do dia, e que a fazia fechar os olhos esperando que eles nunca mais abrissem, ao mesmo tempo que a tristeza da sua imprudência, alimentada pela sua ingenuidade precocemente abatida, se apoderava do seu estado de espírito, contaminando a sua alma.
Os seus ouvidos ocuparam-se com o som daquele passo lento e pesado até que ele desapareceu, ao fundo naquela esquina da rua da sua casa onde há muitos anos sentiu o primeiro toque nos seus lábios. Esse breve pensamento, escondido por entre a poeira da sua memória feminina, fê-la sorrir por segundos, tempo imemorial onde o seu belo sorriso surgiu escondido por entre a escuridão total do seu quarto, impossível para alguém se apaixonar por ele. Mas rapidamente os instantes de felicidade desapareceram para finalmente o seu espirito se deixar inundar pelo sentimento de tristeza. Respirou fundo, num longo suspiro e deixou-se escorregar pela colcha suave até se deitar de costas. Contou até 10 e levantou-se, ficando de pé ao mesmo tempo que levava as mãos ao alto espreguiçando-se preguiçosamente. Deixou cair os braços, ao mesmo tempo que compunha o seu cabelo deixando-o cair pelos seus ombros descobertos. Por detrás da espessa cortina negra da noite, totalmente coberta no seu anonimato, o seu corpo nu passeava-se pelo quarto completamente imune a olhos curiosos que pudessem apreciar uma espécie de imperfeição imperfeita dos seus contornos redondos e bem definidos.
Era uma das suas noites preferidas, apesar da tristeza que a acompanhava. O calor tinha descido à cidade, fazendo com que Lisboa se tornasse ardente e insuportável, e a noite não tinha escapado a essa malfadada sorte. Não é que não gostasse do calor mas para si, tudo o que era demais, enjoava-a de uma forma bastante aguda. O passeio pelo quarto foi errático, apenas percorrendo cada pedaço de soalho de madeira como se fosse uma pedra isolada no meio de uma falésia, saltando de um em um, de forma graciosa e segura. E ao mesmo tempo que o fazia os seus olhos abertos, que apenas viam a escuridão, imaginavam a luz do dia e aquilo que poderiam ver. E ao mesmo tempo sentia-se livre, sem nada que prendesse os seus movimentos, que lhe fizesse sentir que tinha o cérebro amarrado a qualquer preconceito que hoje é moda e que amanhã é ordinário. No fundo, a nudez do seu corpo dava-lhe a liberdade que a sua pintura, que a sua fotografia, que a sua cultura, que os seus homens não lhe davam. E a noite era para si, não mais do que, o seu espaço íntimo onde se podia sentir, tão e simplesmente, livre.

domingo, 12 de julho de 2009

Um livro inacabado... [pág.99]

Abriu os seus olhos enquanto o seu corpo pemanecia quieto dentro da manta, esperando que o barulho à volta do seu quarto desaparecesse. Ouviu os últimos passos a desaparecerem ao longe e saiu debaixo da roupa pesada que a cobria do frio nocturno percorrendo uma pequena distância até a um armário rente a uma das paredes. Abriu as duas portas e enfiou os seus dois braços até uma pequena abertura que se situava na ponta inferior esquerda. Baixou-se apoiando o seu jolho nu no chão do quarto e rodou um objecto que fez um clique ao abrir um esconderijo. Dentro dele retirou um leno de pano castanho escuro, um chapéu de palha, um elástico que a sua mãe lhe tinha oferecido antes do casamento, um casaco de couro preto de mangas compridas e umas calças de pele justas ao corpo. Despiu o seu vestido de noite junto à janela aberta, a luz lunar banhava o seu corpo nu voluptuoso que era reflectido pelo espelho que estava à sua frente. Por momentos ficou a contemplar os contornos do corpo espelhado naquele grande pedaço de vidro liso, a observar as formas que sobreviviam ao tempo e que tanto atraíam os homens. Pegou nas calças de pele e vestiu-as, agarrou no casaco de couro e cobriu a parte de cima do corpo com ele apertando-o à pele. A sua mão direita alcançou o elástico oferecido, enrolou-o à volta do seu cabelo feminino apanhando-o com destreza. Pegou no pano castanho escuro e cobriu o seu cabelo loiro, escondendo-o. Colocou o chapéu de palha completando o disfarce. Voltou a olhar para o espelho para ver o seu corpo banhado pela luz nocturna. As calças já não estavam tão justas como antigamente, a idade tinha-a emagrecido. O casaco ajustava-se que nem uma luva às formas proeminentes do seu peito realçando-as, o que a deixou parcialmente desanimada, queria passar despercebida. Ajustou o cabelo preso pelo elástico ao pano que o cobria e compôs o chapéu de palha para impedir que algum fio loiro se visse fora do sítio. Sorriu ao ver a sua figura, lembrava-se da sua juventude quando brincava aos disfarces e perceber do jeito que tinha para os fazer. Passou amão uma última vez pela ponta do chapéu, compondo-o, e saiu do quarto.
Os corredores estavam vazios de vida humana e as outras divisões acompanhavam a noite no seu torpor sonolento silencioso. Os seus pés deslizavam sobre o soalho de madeira coberto a toda a largura por uma carpete vermelha, os seus passos eram controlados ao milímetro para não emitirem nenhum barulho que a revelasse. Os seus olhos rapidamente se habituaram à escuridão e os seus ouvidos estavam atentos a qualquer som que pudesse vir dos corredores laterais. Percorreu a longa distãncia que separava o seu quarto da escadaria principal num ápice aproveitando o seu longo conhecimento daquelas paredes. Desceu as escadas sem olhar para os pés, os seus olhos perscrutavam a todo o instante cada esquina e cada corredor. Chegou à porta principal do palácio e abriu-a com cuidado para que não rangesse. Ultrapassou a soleira da porta e fechou-a com o mesmo cuidado. Caminhou três passos e sentiu o fresco daquela noite a percorrer as suas narinas.