Número total de visualizações de páginas

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A Noite Citadina [Parte I]

Ela balançou docemente pelo ar frio, empurrada pela brisa gélida que enigmaticamente toca nas peles humanas e arrepia, trazendo das profundezas da alma os meandros mais profundos do desconforto. Ela continuou na sua lânguida caminhada silenciosa, até repousar traquilamente na áspera gravilha coberta pela escuridão. A folha permaneceu incógnita na sua total ignorância universal, enquanto a noite desfiava os seus segredos. A rua dormia num sono tranquilo, enrolada na sua manta invisível de bocejo aconchegado, dando abrigo à multiplicidade de almas desconexas que viviam nas suas bordas. Parcas luzes em andaers superiores revelavam os espíritos mais nocturnos, movidos por uma gennuína insónia, ou por ocasionais leituras madrugadoras, ou simples exercícios conjugais num mix contínuo de silêncios, suspiros e suor. Periodicamente, de tantos em tantos metros, uma luz bafienta e por vezes tremelicante, dava uma segurança éfemera àquela rua, revelando as suas entranas mais profundas. Um gato de pêlo oleoso passeava por segundos a sua vida de ladroagem anumal e de solidão de rua, uma senhora de mais idade acelerava o seu passo ciente que o seu pequeno filho ansiava pelos seus braços quentes e o seu amor maternal reconfortante, e um homem no seu aspecto andrajoso passeava a sua sujidade extrema não caminhando, apenas arrastando a sua própria existência que a sociedade tinha marginalizado numa ostracização opaca e cruel.

Os minutos passavam na sua eternidade intemporal, para sempre perdidos na memória eterna do desstino, mas uma memória eferma dos Humanos numa erosão constante provocada pelo tempo. A vida simplesmente não se desenrolava naquela rua, apenas mais uma no meio de tantas daquela grande cidade plantada à beira-mar. Grande na sua pequenez e mesquinhez, num retrato nacional pouco abonatório de um somatório de almas incapaz de suster a sua forte queda e degeneração constante num ritmo inexorável. Somatório esse que dá pelo nome de Povo, essa entidade estranha incapaz de ser definida e explicada em meras linhas lógicas de simplicidade atroz, e para sempre fechada numa redoma protectora contra qualquer tipo de agressão exterior. E enquanto a noite se abatia com uma profundidade crescente, a folha permanecia no seu minúsculo retiro irracional, sentindo por vezes a brisa gélida a afagar a sua superfície. Tão irracional e adormecida ela estava, que não reparou num pequeno barulho de algo a raspar na gravilha a aproximar-se perigosamente e, finalmente, a esmagá-la num movimento lento e silencioso. Os seus pés pararam naquele instante a sua breve caminhada. Nesse mesmo segundo o barulho da gravilha remexida cessou, cobrindo-o de um silêncio misterioso. Sentiu algo mais escorregadio por debaixo do seu pé direito e fez força para baixo, esmagando por completo a folha e enterrando-a parcialmente na ténue e fina camada de gravilha. À sua volta, uma clareira formava o seu palco, ladeada por quatro bancos, dois de cada lado e separados por metade da altura de um homem mediano. A clareira não tinha uma forma geométrica simples ou concreta, era uma mistura simultânea de um círculo, de uma oval, de um rectângulo e de um quadrado, formando apenas e unicamente um desenho anárquico na sua extrema organização. A única paisagem comum era a fila constante de poucas árvores que rodeavam o pequeno campo de gravilha. Era neste espaço que o seu corpo tinha cessado a sua viagem, contemplando o que os seus olhos viam.

Cerrou o seu olhar por breves momentos, os suficientes para sentir aquele ar fresco apreciável rondar o seu robusto corpo protegido por grossas camadas de roupa. Abriu ligeiramente a sua boca e deixou sair um suspiro mais prolongado, expelindo, na escuridão protectora, uma prolongada nuvem de vapor de água gélido. Reabriu o seu olhar e voltou a vislumbrar parte do que a sua memória já tinha gravado. À sua frente conseguia ver um candeeiro de rua que lançava a sua luz titibiante, iluminando um passeio de calçada branca suja e a entrada da clareira. A sua luz era tépida, aplacada por um fino nevoeiro que teimava em surgir e aumentar de presença, obstruindo cada vez mais o campo de visão. Por detrás das últimas árvores, ao lado da entrada da clareira, conseguia ver parte da fila de prédios ordinariamente alinhados, e uma ou outra luz mais fraca, de um simples candeeiro de mesa numa das janelas mais altas. Respirou fundo e apertou as suas luvas pretas de cabedal, aconchegando as suas fortes mãos no seu interior. Compôs o seu comprido sobretudo escuro, sentindo-se aconchegado no seu interior, e endireitou a gola levantada que alimentava o disfarce. Levou a mão direito ao bolso lateral direito do seu sobretudo e sentiu aquele peso que o reconfortou e que lhe provocou um sorriso gélido na face. Suspirou fundo, cerrou os olhos por um instante e, sentindo a rua totalmente silenciosa, esboçou o seu primeiro passo seguindo de um segundo mais convicto. No meio daquele largo jardim surgiu um efémero barulho de gravilha remexida, em direcção àquela rua completamente adormecida, incapaz de prever que um fino fio de sangue iria manchá-la para sempre.

Fim da Parte I


segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Um simples anúncio

A partir de amanhã, um conjunto de capítulos serão lançados ao vento, esperando que alguém os sinta como literatura que valha a pena perder alguns minutos...