Número total de visualizações de páginas

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Inédito [4ª parte]

Permaneceu mais instantes a observar a esquina por onde tinha visto a mulher a desaparecer. Por detrás daquela curva escondia-se, num mistério incógnito, uma visão que o tinha deixado curioso, uma possível descoberta continuada e paciente. O seu pé direito tinha parado de rodar sobre o cigarro morto e sentia dentro de si aquela névoa cinzenta a cavar uma sepultura lenta e inevitável. Voltou-se de costas para a esquina apagando para sempre a hipótese de uma continuação e voltou a dirigir-se para a porta do prédio. Parou na sua entrada e fitava pela segunda vez o lanço íngreme de escadas bafientas que subia para o andar pretendido. Nas suas costas o polícia cofiava o seu bigode enquanto compunha com afinco o seu chapéu, ao fundo um par de adolescentes roubava uma idosa.
Avançou dois passos e entrou na soleira da porta. Colocou o pé direito no primeiro degrau e pressionou-o, sentindo a madeira outra vez a estilhaçar-se debaixo da sua sola. Os seus olhos castanhos tentaram vasculhar o negro que cobria o espaço mas foi incapaz de reparar em algo, algo que esperava encontrar. Baixou o olhar na direcção das escadas que conseguia ver e viu as mesmas escadas íngremes que teve de percorrer ao longo dos últimos dois anos, sem ver o fim à vista. Soltou um suspiro resignado e começou a subir os degraus.
À medida que subia o lanço sentia com mais nitidez a madeira a desfazer-se mas milagrosamente chegou incólume à porta entreaberta do andar. À sua esquerda um vazio negro estendia-se até um abismo escondido e invisível, uma visão que bem conhecia. Cravou o seu olhar na porta à procura de pormenores. Estava entreaberta e a corrente de ar preocupava-se em batê-la no trinco, tinha um ar frágil de cor castanho-escuro. Aproximou o seu olhar e fitou com atenção a fechadura. Parcos riscos leves notavam-se à volta dela, na madeira junto ao trinco os seus dedos sentiram finas falhas provocadas por um objecto afiado. Encostou o dedo à madeira e empurrou a porta que se abriu lentamente. À sua frente estendia-se um corredor largo coberto por paredes beje pontilhadas por vários quadros, um navio atracado num porto medieval de uma cidade industrializada, uma paisagem naturalmente verdejante com parcas árvores e cores a mais. Os seus olhos captaram um ou outro jarro branco com iluestrações azuis anichados em pequenas mesitas vergonhosas da sua altura desmesurada. O corredor prosseguia até atingir uma parede que seguia para a direita iniciando outro caminho. Pensou para si próprio que prestaria mais atençao aquela parte da casa talvez noutro dia.
O seu olhar e sobretudo a sua atenção foram captados pela primeira porta que encontrou à sua esquerda. Era uma porta de vidro, naquele momento totalmente escancarada, estilhaçada num padrão irregular. Raspou os dedos pelas falhas tentando descobrir como poderiam ter sido feitas mas necessitava de mais tempo e mais observações. Junto da porta vários pedaços de vidro estavam anarquicamente espalhados pelo chão da sala. Pela sua disposição pareciam-lhe despojos de uma luta corpo a corpo, baixou-se apoiando-se num dos joelhos, e apalpou o chão levemente húmido. Os vários líquidos não tinham tido tempo suficiente para secarem, mentalmente começavam a surgir ideias vagas. Junto dos detritos de vidro apresentava-se um mini bar caseiro de onde faltavam algumas garrafas, parte delas jaziam despedaçadas à volta do seu joelho. Ficou alguns instantes a observar o balcão de madeira brilhante e forte, passou os dedos ao longo da bancada e nenhum sinal lhe veio para às mãos, estava suspeitosamente limpo. Desviou-se do balcão e observou melhor a sala. Era a maior divisão da casa, assim descobriu mais tarde e devido às suas duas grandes janelas era abraçada todos os dias por uma luz diurna forte. Entre as duas janelas, junto à parede, estava a mesa de jantar, ao fundo era a parte do lazer inde um móvel preto abrigava um plasma avançado no preço com grandes finas colunas de som ao lado. Junto à televisão repousava um sofá de cabedal negro e à direita, na parte mais escondida, situava-se a estante tapando uma parede beje, a cor omnipresente em toda a casa.
O seu olhar voltou para o dia presente e continuou a analisar o que observava. Ao longo do corredor interno da sala reparou em pequenas gotas de sangue que iam desde os pedaços de vidro e onde estava o corpo morto. Olhava para os pingos vermelhos tentnado encontra uma lógica mas que lhe escapava por entre os dedos. As cadeiras à volta da mesa estavam caídas para todos os lados. Mais ao fundo a parte de lazer parecia intocada, o sofá estava impecácel sem um único vislumbre de protecção, à sua direita a janela estava fechada mas partida de uma forma que indicava violência e à sua esquerda estava a estante ainda colada à parede mas com alguns livros espalhados pelo chão e outros caídos nas prateleiras.
No meio da sala estava o corpo inerte e rígido do morto coberto por um pano branco. Aproximou-se com delicadeza mas permaneceu de pé a observar o pano. Fitou o corpo, percorreu com o olhar os salpicos de sangue e chegou aos estilhaços de vidro perto da porta escancarada, viu as duas janelas, ambas fechadas mas só uma partida, reparou nas outras portas da sala fechadas para o resto da casa e observou a estante fora da sua normalidade. À medida que o seu olhar varria a sala a sua mente formulava ideias hipotéticas de sub-hipóteses e hipóteses contraditórias através de teorizações suspensas num ar de ignorância. Deu alguns passos para trás sem deixar de inspeccionar aquela parte da sala com o seu olhar, deu mais voltas ao espaço conhecendo-o intimamente. Parou junto da estante longamente e no chão, quase escondida, uma caneta repousava discretamente sozinha."

2008-10-31
23h54

Sem comentários:

Enviar um comentário