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terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Inédito [3ª parte]

Uma forte brisa fresca percorreu a atmosfera levando consigo uma fina névoa branca. Da ponta do seu cigarro a chama silenciosa e invisível consumia os últimos centímetros de papel e folhas até chegar ao filtro. O seu passo era lento e demorado, sinal de uma mente confusa e desordenadamente complexa, tentando colocar as peças dos últimos dias, no puzzle desconexo que tinha descoberto. As pedras da calçada apresentavam-se no seu branco sujo habitual cobertas por plásticos perdidos, beatas soltas, pedaços castanhos mal cheirosos, e os seus sapatos negros mal lustrados e podres pelo uso constante. O seu polegar direito tocou duas vezes na ponta do filtro e os últimos restos de cinza caíram como pingos de chuva miudinha no chão.
Parou ao pé de uma esquina bem iluminada pela forte luz diurna da tarde. Passou os dedos pelo nó da gravata desapertando-o milimetricamente. Sentia-se enforcado por aquela obrigação, por uma visão redutoramente retrógrada da vida em sociedade, por uma cambada de inegrúmenes que defendiam a capa da velha escola escondendo-se atrás dela para a trair por trás com um sorriso aberto. Deixou a ponta do cigarro cair na pedra da calçada, colocou o pé direito sobre ela e esmagou-a com a gentileza de um amante apaixonado pela sua perdição mortal. Fechou os olhos, sabia o que tinha que a seguir à esquina, mas por enquanto não a queria ver.
Do outro lado da rua um transeunte incógnito percorria o passeio a uma velocidade estonteante. Os seus pés engoliam terreno, a sua mão direita compunha freneticamente a alça da mochila que escapava teimosamente, de segundo a segundo a sua cabeça olhava repetidamente para trás. De repente um grande autocarro amarelo surgiu ao fundo da rua com boa velocidade e o transeunte começou a correr, a corrida da ralé mediana que vive com os trocos contados e o credo na boca. Durante a corrida o transeunte passou por um banco de jardim onde repousava uma idosa. O seu olhar era baixo e perdido, de tempos a tempos levantava-o observando em volta, as folhas que nadavam no chão impulsionadas pelo vento, pombos que circulavam impávidos e serenos, uma resignação raquética e os contornos de um caixao que se desenhavam, imperceptíveis, cada dia que passava por aquele corpo idoso.
Abriu os olhos e compôs o nó da gravata confiando no tacto dos seus dedos. Virou-se para a esquina e atravessou-a, colocando as mãos dentro dos seus bolsos. À sua frente um imponente edifício branco destacou-se no horizonte. Um grande pórtico de madeira castanho como singela e tímida porta de entrada, vitrais dominavam as zonas laterais e no topo, aquilo que tanto abominava e estranhava como símbolo de toda a podridão daquela instituiçã, uma cruz. Várias fiéis entravam e saíam da igreja aquela hora normalissíma a meio da tarde, mas nenhum pareceu reparar no homem moreno de fato e gravata que subia a longa escadaria em direcção à entrada.
À frente dos seus olhos estava a enorme porta de madeira a fitá-lo no alto da sua imponência. No meio, à sua altura, encontravam-se vários editais e panfletos protegidos por uma caixa de vidro. Notícias de jornal sobre a paróquia, calendários de missas e de celebrações litúrgicas afins, horários da catequese para os miúdos, uma míriade de objectos que não justificavam o porquê das provas apontarem para este local especifíco. À sua direita uma pequena porta abriu-se revelando um fiel a sair e uma entrada para o interior da igreja. Aproveitou a deixa e atingiu a porta num salto antes de se fechar por si. Entrou dentro da igreja e fechou a porta, observando atentamente o interior. Inúmeras velas iluminavam o amplo espaço coberto por bancos corridos de madeira em conjunto com a luz natural vinda dos vitrais. Várias esculturas religiosas decoravam as paredes acompanhadas por pinturas bíblicas. Os seus passos ecoavam na laje fria da igreja, golpes de faca gélida dum herege no coração da religião. Fitava as expressões mudas das estátuas desprezando cada pintura alegórica de um ideal de fé caduco e ultrapassado pelas próprias acções e omissões daquela instituição milenar. Olhava para os vários fiéis ajoelhados rezando para um pobre homem coitado pregado a uma mera cruz de madeira e sentia-se ultrajado por aquelas pessoas ainda acreditarem na hipocrisia proferida todos os domingos no alto daquele púlpito solitário, na insanidade mental que a expressão "vontade de Deus" provocava nos homens mais fanáticos. Ao fundo viu um grupo de crianças ser conduzidas por dois catequistas e não conseguiu evitar um abanar de cabeça e um olhar indignado, dentro daquelas salas internas uma espécie de lavagem cerebral iria ter lugar. Era nestas alturas que se sentia espantado e zangado consigo próprio por ter sido capaz de ter acreditado numa farda hedionda coberta por promessas de paraísos inexistentes e perdões ridículos. Se não fosse a morte abrupta e violenta da sua mulher e único amor em toda a vida, ainda estaria afogado num mar de hipócritas sujos em termos mentais.
O seu passeio pelo interior da igreja, embrenhado nos seus pensamentos mais profundos, terminou junto ao altar onde podia ver com toda a clareza o corpo e a expressão do tal homem crucificado. Supostamente ele devia-se ajoelhar perante aquela figura e fazer um sinal com as mãos, mas simplesmente virou as costas e soltou um riso irónico. Nunca se rebaixaria perante o criador de algo tão hediondo e falso. Fé, é preciso ter fé, insistiram os seus amigos mais próximos nas horas anteriores à morte dela. Não foi a fé que a salvou, ninguém a podia ter salvo. A partir dessa noite perder a sua fé, substituída por um ódio tremendo a todos os edifícios iguais aquele. Acima de tudo, a Igreja repugnava-o e sentia-se um herege dentro daquele espaço.

2008-10-09
01h17

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