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terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Inédito [2ªparte]

A sua pele levantou-se com um arrepio ao ouvir o chiar dos travões ao estacionar o seu carro. Rodou lentamente o manípulo e a janela ao seu lado subiu com esforço para não mostrar o vidro sujo. Abriu a porta e empurrou-a para ter espaço de saída e lançou o seu corpo em direcção ao mundo que se desenvolvia naquela rua.
Fechou a porta do carro atrás de si com um estrondo raquético e guardou a chave dentro do seu bolso direito, depois de desferir um círculo à volta do dedo. Apertou o botão do meio do seu fato e compôs o nó feito em três tempos sobre um vidro partido quadrado colocado no tampo da uma mesa. Olhou para ambos os lados da rua à procura de movimento que perturbasse a passagem rápida da estrada até ao outro passeio. Mergulhou as mãos dentro dos bolsos das calças e iniciou um longo dia de trabalho.
À medida que atravessava a estrada, no seu passo lento, os seus olhos esforçavam-se por captar qualquer pormenor que lhe pudesse interessar. Uma senhora idosa subia com extrema dificuldade a rua carregando um saco cheio de compras e, num esforço sobrehumano, apoiando-se numa bengala de madeira escura. A cada dois passos seguia-se uma paragem momentânea, segundos preciosos de oxigénio para um corpo à beira do seu destino final. A mulher pressentiu algo nas suas costas, era um rapaz novo que subia a rua em passo acelerado, privilégio próprio de quem anda pelas vielas da ingenuidade adolescente. O seu olhar captou a idosa a esboçar um movimento trémulo a pedir por auxílio mas o jovem ultrapassou-a incólume aos apelos, dois phones permaneciam colados aos ouvidos. A senhora, incapaz perante a música estridente que a impediu de ser ajudada, voltou-se para o seu pequeno mundo raquético e insignificante perante a sociedade, e prosseguiu a sua subida demorada. Antes de chegar ao passeio, sentiu algo a estilhaçar-se por debaixo do seu pé esquerdo, desviou o seu sapato preto e viu uma seringa já usada. Levantou o seu olhar que encontrou o desfile de casas negras de poluição, sujas de pobreza e miséria e imediatamente percebeu. Subiu o passeio num salto e deparou-se com a fita azul e branca, listrada, da polícia que selava a entrada de um dos prédios. Um agente forte, barriga de cerveja proeminente, bigode farfalhudo e chapéu descaído abordou-o, pedindo a identificação. Levou a sua mão ao bolso interior do casaco e retirou a sua carteira abrindo-a de par em par. Os seus olhos prestaram atenção à fachada do prédio, várias janelas estavam partidas ou inclusivé abertas e pombos aproveitavam para compor os seus ninhos. O guarda soltou um grunho afirmativo deixando o senhor inspector ultrapassar a fita e entrar no prédio.
A primeira visão que teve foi de uma porta escancarada e um corredor mal iluminado que subia em escadas estreitas. Para além de mal iluminado, um forte cheiro nauseabundo dava as boas vindas calorosas aos novos visitantes que tivessem a ousadia de subir aqueles degraus. Assim que colocou o pé no primeiro degrau, sentiu a madeira a desfazer-se e um suspiro enfadonho saíu da sua boca. Esforçou os seus olhos tentando vislumbrar algo no cimo das escadas mas a sua tentativa foi infrutífera. Recuou dois passos até estar novamente no passeio sob a luz matinal e sacou do seu maço de cigarros. Abriu-o e viu que só tinha quatro pequenos e finos assassinos inertes prontos a invadir os seus pulmões. Enquanto pegava num esforçava-se mentalmente para não pensar no sítio onde poderia restabelecer o seu vício. Ao mesmo tempo que desenrolava o seu vício habitual de sacar o cigarro, colocá.lo nos lábios, acender o isqueiro e ficar segundos a olhar para a chama dançante, uma figura feminina surgiu a descer a rua. A sua visão fixou-se naquele vulto, qual predador a fixar a sua presa. Cabelo moreno comprido esvoaçante ao ritmo do vento, brilhando sob a luz diurna, olhos claros concentrados nas pedras da calçada, passo seguro e decidido, calças de ganga descaídas mostrando perigosamente partes fechadas ao comum dos mortais no seu passeio diário incógnito, top curto revelando um dia de calor e muitos olhos postos em cima. Um bafo prolongado enquanto via aquele corpo a rodear a atmosfera daquela rua, inalou uma penúltima vez e ela passava justamente do outro lado da rua, uma mão compôs o cabelo, formou círculos de funo num último bafo e a sua silheuta recuada mostrou-se unicamente, deixou cair o cigarro e pisou-o morrendo a chama, ela virou uma esquina e desapareceu.

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